À volta da mesa, toda a nobreza da
terra se banqueteava, as portas trancadas e bem guardadas, mantinham
aparentemente incólume o local, assim seria até ao fim do banquete.
Todos se tinham esmerado nas suas mais
nobres e exuberantes roupas, os Pater
familia, arrastaram atras de si, para este único e por isso peculiar
banquete, toda a família, séquito e até as meretrizes e por arrasto, todos os
bastardos, todos os bastardos da terra, filhos, eles próprios, filhos de
bastardos perante a lei de Deus.
Aqui e além, os archotes pareciam
consumir avidamente o oxigénio existente, dando uma luz que não era apenas luz,
era uma luz mágica, fruto da sua artificialidade, o seu ar era sagrado mas
também malévolo, uma luz de quem quer asfixiar os “iluminados”, os bastardos
convivas.
As grandes portas de madeira, há muito
que tinham dado o seu ultimo rangido, as trancas pesadas, há muito que tinham
sido definitivamente baixadas, aferrolhados. No interior estavam apenas os
comensais. Tais portas só deveriam e foram abertas. meses depois, e com a sua
abertura duas descobertas terríveis, uma de enojar, outra de morrer a rir,
daquele rir que só ri quem esteve para ir e não foi, de quem esteve para morrer
e não morreu.
Lá
fora...bem… “o lá fora”, não interessava, enfim, não interessava por ai além,
embora, não se compreendesse a razão de alguns dos convivas olharem tão
fixamente para os corredores de saída!? Porém, os seus olhares, logo vagueavam
em outras direcções, quando os seus olhos se cruzavam com o dos guardas, que
fortemente armados e fortemente pretorianos, zelavam para que a nenhum
corredor, porta ou mesmo fresta, se pudesse ter acesso.
Com
as portas cerradas, a separar o mundo interior do mundo exterior, a festa ia
avançando, grau após grau, passo após passo, enquanto as pesadas e recheadas
bandejas, de prata, iam circulando, carregando um e outro “cordeiro imolado”, o
rol de artistas, ia fazendo a sua apresentação, um trovador, depois outro, que
anuncia a entrada dos jograis e depois outro grupo de jograis que por fim
anunciam o antepenúltimo momento da noite…todos são convidados a regressarem
aos seus lugares na mesa, até nisto, a festa era estranhas, uma mesa, uma
grande mesa, onde os nobres, todos os nobres da terra, se sentavam e comiam e com
eles as famílias, as putas, os trovadores, os jograis.
Embora as portas estivessem cerradas e
bem cerradas, isso não impedia que o frio e o vento da noite entrassem, mesmo
sem convite. Alinhados, todos os estandartes nobres tremiam perante a passagem
do vento. Por todo o lado, uns estranhos símbolos em forma de bandeira, também
se revolviam na dança do vento, uns panos amarelos, e neles, um sol a preto
desenhado, com um olho no seu interior, e este, de cor negra também.
Alguém tratou de colocar lenhas nas
enormes e majestosa lareiras, as travessas foram aparecendo com menos intensidade,
até que não apareceram mais… das cozinhas, já sem aventais juntaram-se os que
serviam e os que a cozinhavam, lentamente, o enorme mas ordeiro grupo, inicio
um cântico estranho, em língua nenhuma, algo de assustador e gutural,
espantosamente, afinados guturavam nobres e criados, unidos por uma estranha
força, por um estranho magnetismo, por um fatal destino.
Uma outra enorme mesa, plena de cálices
em prata, foi arrastada para o centro da sala, o seu brilho tornava-se mágico e
belo, com o “criptar” lusco fusco das tochas e do fogo das lareiras.
Alguém, que por ventura seria o mais
alguém de todos os presentes, grita: -“Cumpra-se o nosso destino...” ao
que, todos os presentes, mais ou menos roucamente, mais ou menos plenos de
convicção gritaram: -“ Cumpra-se o nosso destino...”, as suas veste foram caindo
pelo chão, tranquilamente foram tomando posse do corpo de uns e outros, um
longo bacanal, uma ultima bastardisse depois de uma vida de bastardos, uma
ultima putisse depois de uma vida de putas, um ultimo poema ao pecado, uma
ultima exortação a Sodoma e Gomorra, os guardas, agora também eles
nus, despidos de todo o seu ar viril e pretoriano, tremiam perante as
investidas das pecadoras e dos pecadores, as lanças não eram agora lanças, eram
muletas tremulas que os mantinham ainda de pé.
Aos poucos, as câmaras, antecâmaras, e
pequenos corredores foram-se transformando em locais de culto e sexo, os
gritos, os gritinhos , os gemidos, os gemidinhos ecoavam por toda a parte e com
isto, a noite já ia longa, perto de se fazer manhã.
Por fim, um a um, iam atingindo o
ultimo prazer, ritualmente olhavam para o alto, e ainda nus, dirigiam-se ao
centro da câmara principal, onde, tranquilamente, os esperavam os misteriosos
cálices, sem olhar para nada nem ninguém, engoliam a beberagem, sem caras
feias, fazendo crer que era um misto de ultima bravura, ou que a zurrapa não
seria assim tão má; deslocavam-se o suficiente para longe da mesa, onde, como
que tombados por uma força misteriosa, ali caiam em silêncio, assim foi, um a
um, e por fim todos, não restou ninguém, nenhum “Ai Jesus” quebrou o silêncio.
Numa antecâmara mais estreita e escura,
por entre berços, crianças grandes e pequenas, o silencio era também de morte,
todas dormiam um sono único eterno e profundo, um único archote iluminava a
cena calma e macabra, este, como os seus irmãos archotes, acaba por extinguir a
sua chama, não conseguiram eles, archotes, consumir o ar aos presentes e estes
agora ausentes roubaram-lhes o ar, encerrando assim, o ciclo que os tinha ali
levado, fez-se noite no lúgubre castelo, enquanto que lá fora...bem, lá fora, o
dia já tinha acordado, depois da sua irmã noite, ter presenciado um peculiar pesadelo,
um muito estranho ritual.
03 de Janeiro de 1400, às portas do
castelo, uma longa coluna encontra-se especada, abanam lanças e cruzes, o medo
do desconhecido, levou-os a trazer o poder terreno das armas… e dos céus , a
cruz…
Um punhado de homens é encarregue de
forçar a porta, todos se benzem freneticamente, o sol radioso a tudo assiste,
como se de nada soubesse, primeiro uma , depois duas e por fim três tentativas
as portas foram cedendo mas sem abrir, alguém grito para que mais homens
viessem, eles vieram e outros mais tarde se juntaram, a porta queria ceder, mas
não abria, por fim, um clero presente gritou : - “ Com fé, batei-lhe com fé, não
abre por que vós bateis com força, mas a medo, medo que ela abra, e do que nos
esconda, mais fé e menos medo...” .
Assim o fizeram, depois de se benzerem
de novo, um impulso, um segundo e por fim ao bater do terceiro, porta, tranca e
ferrolho cedem, o sol escondesse, e o lindo e solarengo dia, torna-se, de
súbito, num estranho quase que anoitecer. Apressada e assustadamente, chamam-se
as “armas do céu e de Deus”, forma-se uma supersticiosa ala de cruzes,
entra-se, tenta-se, quase em vão, que se acendam os archotes, que, sabe-se lá
por que motivo, teimam em não acender, por fim, alguma luz, no chão os
primeiros corpos nus vão surgindo, a fraca luz, transforma-lhes a figura, são
mais assustadores que o habitual, são testemunhas silenciosas de algo que
incompreensível se passou, actores mortos em cena.
Os
archotes vão-se incendiando, um a um, tornado o palco mais claro, mais vivo
para ver a morte, aliás, dando luz a mortandade. Existem sinais de uma festa
paradoxal, que termina na morte de todos os convivas, todos os cantos se
parecem com câmaras ardentes, a cada passo, é a descoberta de mais um corpo, de
mais um nu, até a sua descoberta se tornar banal, já não os aflige tanto a
mortandade, mais sim os porquês da mesma!?
Por sobre as suas cabeças, um longo
pedaço de tecido esvoaça, como que enfadonhamente a respirar um pouco do novo
ar, e nele uma longa inscrição, uma longa resposta,
Aqui se celebrou o ultimo banquete e a
ultima orgia da humanidade,
O APOCALIPSE!
Não nos perdoeis, segui-nos...
Olá João Ramos,
ResponderEliminarDestruição de SODOMA e GOMORRA… devido a quantidade excessivamente alta de seus pecados!
A penumbra das suas palavras e sentidos vertidos com sabedoria bíblica, transmuta um sentimento ausente de preconceito escorrido de uma alma com alguns fragmentos de pregações impiedosas. Ensaiou e exiu-se muito bem, João! O desafio foi desmedido e o resultado distinto! Parabéns! Não me surpreendeu porque já lhe reconhecia muito valor. Mais uma vez veio a confirmação. Uma virtude percebida e desenvolvida para lá da habilidade da escrita. Deixo-lhe algumas palavras:
Deus nunca destrói o justo com o ímpio. Os justos não foram comensais para o banquete. Foram salvos antes das taramelas encerrarem por completo as portas da cidade ou povoado. Nunca estas palavras fizeram tanto sentido! Eu, sou uma das filhas de Ló e o João um “Pater família” de Sodoma! Não fui uma das convivas mas fui conhecida (em sentido hebraico) pelo João! Fui avisada pelos anjos da urgência da minha saída da cidade. E, foi poupada ao último banquete e à última orgia da humanidade. Por isso não escrevo do que se lá passou dentro. Contou-me o João!
A única verdade que tenho em mim, é que os homens de Sodoma eram extremamente perversos e pecadores. Tinham de ser condenandos pela sua abusiva heterossexualidade, inospitalidade, violência e esturpancia. A cidada tinha de ser destruida e com ela todo o pecado contra o Senhor! Esta é uma história recorrente quando se fala da inospitalidade. Farei uso das palavras bíblias para alertar os demais: “Na cidade ou povoado em que entrarem, procurem alguém digno de recebe-los, e fiquem em sua casa até partirem. Ao entrarem na casa, saúdem-na. Se a casa for digna, que a paz de vocês repouse sobre ela; se não for, que a paz retorne para vocês. Se alguém não os receber nem ouvir suas palavras, sacudam a poeira dos pés quando saírem daquela casa ou cidade. Eu lhes digo a verdade: No dia do Juízo haverá menor rigor para Sodoma e Gomorra do que para aquela cidade.” – sumptuosa esta passagem!!!
Termino dizendo ainda que além da verborragia com que o João descreve os detalhes no seu conto aprecio-lhe a coragem de se permitir utilizar algumas ousadias na descrição. O seu conto se descobre numa bela habilidade em persuadir o leitor – quando iniciamos a leitura prende-nos a querer saber o que vai acontecer. Simples e ponderando, o ritmo que adoptou foi tão bem investido que será possível delicerá-lo sem cansar até mesmo numa extensão bem mais acentuada.
Cumpre ainda lembrar Fernando Pessoa in 'Reflexões Pessoais' e dizer-lhe que “Toda a Sociedade Está dentro de Mim” – fui salva pelos anjos – “O resto - o que está lá fora - desde as planícies e os montes até às gentes - tudo isso não é senão paisagem...”
Ósculos e amplexos, BR
Um lindo conto, com todos os requisitos para realizar um filme, grande criatividade na elaboração da lenda, tem personagens, acção, cenários.
ResponderEliminarA leitura deste conto leva-me para esse mundo de ficção, de uma enorme impressionabilidade e desenvolvimento e que me deixa com um imenso deleite!!
Parabéns João!
lindo João , extraordináriamente bem escrito, mas um assunto que não me atrevo a comentar muito ,pois ulp´trapassa os meus conhecimentos, mas não estaremos nós á beira de outra "sodoma e gomorra"? Que os anjos me avisem e protejam.
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