A medo, e com algum custo, devidamente acompanhada por uma sonora solidão,
mas movida pela força maior que é, indubitavelmente, e sem sobra de
dúvida o SONHO,
subo, ainda que insegura, os degraus do centenário envelhecido e nobre salão.
Numa mão, seguro uns velhos sapatos de pontas, de um rosa já desbotado e
com a outra, agarro forte o agastado corrimão mono.
Ainda a medo, e de coração acelerado, abro as portas do meu novo palco. Ei-la,
a sala!
E olha, ali, o grande espelho, a barra…. e um solitariamente
nobre piano, o coração do amplo espaço… e aquele cheiro… é tanta e tanta a
minha emoção…
Numa das calejadas paredes, um retorcido e plácido retrato, onde leio de
soslaio: GIUSEPPINA BOZZACCHI. Bailarina… pelo menos, suponho…
Súbito, um delicado toque no meu ombro acorda-me para a realidade. Ah! É
o velho dono da já também velha esbelta sala, e é também o velho que toca o solitário
e nobre piano, pois então!
Sorri com candura, ele, circunspecto, aponta para os velhos sapatos de
pontas, de um rosa já desbotado, e “presto” avança trôpego para o piano,
apoiado num tosco, mas nobre bordão.
Sorri eu, novamente, agora trémula, mas logo ligeira, e os velhos sapatos de pontas, de um rosa já desbotado
são logo por mim, aprendiz, calçados, é uma ordem desejada à qual não me oponho.
A luz, bem, a luz é fraca, mas quanto baste, provem de uma tão romântica clarabóia,
penso eu… e pensei, também: - Agora é que é! Vá, avança! Assim gritou em
silêncio o meu coração.
“Allegro ma non troppo”, soam os primeiros gemidos do piano, que rápido dão
forma a uma bela melodia, tão sagrada, com tão celestiais notas, como que
feitas para uma sonora oração.
Menina! Exclamou o Velho. - Aqui somos clássicos, aqui “notre pratique
est seulement École Française! Pelo amor puro à dança, que é um amor como o definia
Platão,
onde, como a menina saberá, não interessa a coisa como objeto, o material,
mas apenas e só a virtude, é um amor assim, pelo Ballet, que eu hoje, agora e
aqui lhe proponho!
A melodia, interpolada com o discurso, no ar pairava, e eu disse,
acenando: - Sim! Enquanto uma estranha magia, conta de mim do meu corpo e alma
tomava. E o coração, num forte “catrapum, pim, pam pum, já todo ele dançava… -
Menina! Não há dança sem aquecimento, é a minha primeira lição!
As ordens de um Mestre são isso mesmo, ordens de um Mestre, há que
obedecer e fazer, por mais que nos pareça aborrecido ou enfadonho.
No entretanto, a música parou, e o Velho, agarrado ao seu tosco, mas
nobre bordão, pegou numa linda caixa em forma de coração…
-Abra! E eu abri. – Não é uma prenda
menina, é muito mais, é mais uma parte do todo que um dia espera vir a ser.
Assim me falou, o Velho, pela primeira e última vez, com um ar sereno e risonho.
A caixa, já baça, e em forma de coração,
deixava ler: - De mim para ti, minha “Prima Bellerina”. Estremeci, e a caixa
abri, num misto de curiosidade juvenil e emoção.
Vislumbrei um bilhete mais íntimo, em tons de rosa, em que li: - Minha “Prima
Ballerina”, e meu “primo e unico amore”, e lá dentro, ainda, um “Tutu”, olhei o
Velho, e tal como ele, lágrimas muitas verti, e agradeci, com uma solene “reverence”,
nada parecia real, pareciam vidas cortadas, e agora unidas do nada, como vindas
de um “entre sonhos”.
Foram muitos dias, uns mais difíceis, outros menos, mas sempre bonitos,
eramos nós, o Velho e o nobre piano, eu, os velhos sapatos de pontas, de um
rosa já desbotado e o “tutu”, um desiderato nos unia, havia uma mútua,
silenciosa e consentida co-adoção.
Foram dia de muitos “Grand Jeté”, um ou dois “Plié”. - Força menina,
dê-me um “Grande Plíe” e termine com um “Frappé”. Foram tantas e tão esforçadas
sequências e posições, mas assim me preparei para o papel maior do Lago dos Cisnes,
Odette. – Estão aí as audições. Disse-me, e senti uma ânsia e um medo muito
medo e muito medonho.
No dia e hora marcada, de charrete, em silêncio, fomos ambos à audição.
Chegámos, saímos, o Velho apoiou-se no seu tosco, mas nobre bordão, e do lado
oposto, apertou-me forte e com amor a minha mão.
Chamam pelo meu nome, sorridente, e em reforço, apresentei-me: -
Catarina, “Prima Ballerina”. E todos sorriram… pareceu-me ouvir a voz, vinda do
exterior, do meu Velho a dizer: - É agora, dança e dança como se nunca tivesse havido
um ontem, houvesse um hoje ou pudesse vir a haver um amanhã. Mentalmente
respondi: - Sim meu querido Velho, tem razão… tem razão!
A música arrancou, libertei-me, senti-me a flutuar, vi as notas da
melodia, juro, comigo a dançar, e todas as antepassadas “Primas Ballerinas”
comigo a rodopiar, e por fim, termino com um “Arabesque”… a gritar por dentro:
- É a dançar que bem me sinto, que me liberto e bem me disponho.
Longo foi o tempo de espera, a angústia de nada saber, até que um gentil
moço mensageiro tocou à porta, entregou-me um pequeno envelope e o envelope
abri… e li: “Mademoiselle Catarina, o papel de Odette do Lago dos Cisnes, é
para si. Ballet de l'Opéra de Paris. Ia ser uma “Prima Ballerina”, era verdade,
realidade, e não mais um sonho ou ilusão.
Sai a voar, corri escada acima, a levar tão boa nova, abro a porta da sala
e dou com um imenso nada, nem o grande espelho, a barra…. ou o solitário, mas
nobre piano… terá também o meu Velho, em silêncio, “partido”? Assim, pensei, e
hoje, também eu já de idade bem adiantada, aqui nesta cama deitada, com a caixa
baça, em forma de coração ao peito agarrada, acredito que o meu Mestre, o meu
Velho, sem que ninguém soubesse, era um anjo do meu sonho e terminada a missão,
ao céu subiu, assim acredito, assim suponho…
“A verdadeira riqueza não está em cumprir todos os sonhos, por vezes
basta alcançar apenas um só e por inteiro, e devemos escolher aquele que no
nosso coração e na nossa alma, achamos ser o sonho dos sonhos, de todos, o
sonho mais apetecido e verdadeiro.”
Há sempre um Anjo que nos acompanha.