segunda-feira, 30 de novembro de 2020

A História de Catarina, “La Prima Ballerina”

A medo, e com algum custo, devidamente acompanhada por uma sonora solidão,

mas movida pela força maior que é, indubitavelmente, e sem sobra de dúvida o SONHO,

subo, ainda que insegura, os degraus do centenário envelhecido e nobre salão.

Numa mão, seguro uns velhos sapatos de pontas, de um rosa já desbotado e com a outra, agarro forte o agastado corrimão mono.

 

Ainda a medo, e de coração acelerado, abro as portas do meu novo palco. Ei-la, a sala!

E olha, ali, o grande espelho, a barra…. e um solitariamente nobre piano, o coração do amplo espaço… e aquele cheiro… é tanta e tanta a minha emoção

Numa das calejadas paredes, um retorcido e plácido retrato, onde leio de soslaio: GIUSEPPINA BOZZACCHI. Bailarina… pelo menos, suponho

Súbito, um delicado toque no meu ombro acorda-me para a realidade. Ah! É o velho dono da já também velha esbelta sala, e é também o velho que toca o solitário e nobre piano, pois então!

 

Sorri com candura, ele, circunspecto, aponta para os velhos sapatos de pontas, de um rosa já desbotado, e “presto” avança trôpego para o piano, apoiado num tosco, mas nobre bordão.

Sorri eu, novamente, agora trémula, mas logo ligeira, e os velhos sapatos de pontas, de um rosa já desbotado são logo por mim, aprendiz, calçados, é uma ordem desejada à qual não me oponho.

A luz, bem, a luz é fraca, mas quanto baste, provem de uma tão romântica clarabóia, penso eu… e pensei, também: - Agora é que é! Vá, avança! Assim gritou em silêncio o meu coração.

“Allegro ma non troppo”, soam os primeiros gemidos do piano, que rápido dão forma a uma bela melodia, tão sagrada, com tão celestiais notas, como que feitas para uma sonora oração.

 

Menina! Exclamou o Velho. - Aqui somos clássicos, aqui “notre pratique est seulement École Française! Pelo amor puro à dança, que é um amor como o definia Platão,

onde, como a menina saberá, não interessa a coisa como objeto, o material, mas apenas e só a virtude, é um amor assim, pelo Ballet, que eu hoje, agora e aqui lhe proponho!

A melodia, interpolada com o discurso, no ar pairava, e eu disse, acenando: - Sim! Enquanto uma estranha magia, conta de mim do meu corpo e alma tomava. E o coração, num forte “catrapum, pim, pam pum, já todo ele dançava… - Menina! Não há dança sem aquecimento, é a minha primeira lição!

As ordens de um Mestre são isso mesmo, ordens de um Mestre, há que obedecer e fazer, por mais que nos pareça aborrecido ou enfadonho.

  

No entretanto, a música parou, e o Velho, agarrado ao seu tosco, mas nobre bordão, pegou numa linda caixa em forma de coração

-Abra! E eu abri.  – Não é uma prenda menina, é muito mais, é mais uma parte do todo que um dia espera vir a ser. Assim me falou, o Velho, pela primeira e última vez, com um ar sereno e risonho.

A caixa, já baça, e em forma de coração, deixava ler: - De mim para ti, minha “Prima Bellerina”. Estremeci, e a caixa abri, num misto de curiosidade juvenil e emoção.

Vislumbrei um bilhete mais íntimo, em tons de rosa, em que li: - Minha “Prima Ballerina”, e meu “primo e unico amore”, e lá dentro, ainda, um “Tutu”, olhei o Velho, e tal como ele, lágrimas muitas verti, e agradeci, com uma solene “reverence”, nada parecia real, pareciam vidas cortadas, e agora unidas do nada, como vindas de um “entre sonhos”.

 

Foram muitos dias, uns mais difíceis, outros menos, mas sempre bonitos, eramos nós, o Velho e o nobre piano, eu, os velhos sapatos de pontas, de um rosa já desbotado e o “tutu”, um desiderato nos unia, havia uma mútua, silenciosa e consentida co-adoção.

Foram dia de muitos “Grand Jeté”, um ou dois “Plié”. - Força menina, dê-me um “Grande Plíe” e termine com um “Frappé”. Foram tantas e tão esforçadas sequências e posições, mas assim me preparei para o papel maior do Lago dos Cisnes, Odette. – Estão aí as audições. Disse-me, e senti uma ânsia e um medo muito medo e muito medonho.

No dia e hora marcada, de charrete, em silêncio, fomos ambos à audição. Chegámos, saímos, o Velho apoiou-se no seu tosco, mas nobre bordão, e do lado oposto, apertou-me forte e com amor a minha mão.

 

Chamam pelo meu nome, sorridente, e em reforço, apresentei-me: - Catarina, “Prima Ballerina”. E todos sorriram… pareceu-me ouvir a voz, vinda do exterior, do meu Velho a dizer: - É agora, dança e dança como se nunca tivesse havido um ontem, houvesse um hoje ou pudesse vir a haver um amanhã. Mentalmente respondi: - Sim meu querido Velho, tem razão… tem razão!

A música arrancou, libertei-me, senti-me a flutuar, vi as notas da melodia, juro, comigo a dançar, e todas as antepassadas “Primas Ballerinas” comigo a rodopiar, e por fim, termino com um “Arabesque”… a gritar por dentro: - É a dançar que bem me sinto, que me liberto e bem me disponho.

Longo foi o tempo de espera, a angústia de nada saber, até que um gentil moço mensageiro tocou à porta, entregou-me um pequeno envelope e o envelope abri… e li: “Mademoiselle Catarina, o papel de Odette do Lago dos Cisnes, é para si. Ballet de l'Opéra de Paris. Ia ser uma “Prima Ballerina”, era verdade, realidade, e não mais um sonho ou ilusão.

Sai a voar, corri escada acima, a levar tão boa nova, abro a porta da sala e dou com um imenso nada, nem o grande espelho, a barra…. ou o solitário, mas nobre piano… terá também o meu Velho, em silêncio, “partido”? Assim, pensei, e hoje, também eu já de idade bem adiantada, aqui nesta cama deitada, com a caixa baça, em forma de coração ao peito agarrada, acredito que o meu Mestre, o meu Velho, sem que ninguém soubesse, era um anjo do meu sonho e terminada a missão, ao céu subiu, assim acredito, assim suponho

 

“A verdadeira riqueza não está em cumprir todos os sonhos, por vezes basta alcançar apenas um só e por inteiro, e devemos escolher aquele que no nosso coração e na nossa alma, achamos ser o sonho dos sonhos, de todos, o sonho mais apetecido e verdadeiro.”

Há sempre um Anjo que nos acompanha.

 

1 comentário:

  1. Há sempre, sempre!a toda a hora e fração de segundo, não te esqueças, sente-o completamente ele é todo teu

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